sábado, 13 de novembro de 2010

Respeitável público


     É noite.O ano é 1972.Estamos na Bahia.Espelhos brilham nos olhares de alguns homens,algumas mulheres,e algumas crianças.A maquiagem branca diverte só de ver.O tempo passa.Todos olham os relógios esperando a hora tão aguardada.O barulho aumenta.A magia se faz presente.Os animais rugem.Alguns risos perdidos anunciam a noite que se aproxima.Nada é como na luz cega do dia que à todos queima.
     As roupas de tão belas espantam os que não estão acostumados a tanta coisa bela.Sim.A atmosfera dessas noites de circo são magníficas,estonteantes.E já se pode ouvir o “Grande público”,que não passa de pequenas crianças acompanhadas de seus pais,tios,avós.Já se ouve também o rufar dos tambores.Os palhaços,antes homens de pecados,agora se tornam anjos do riso,da igualdade.E tudo parece não ter mais conexão com o passado a que antes era ligado.As luzes quentes do picadeiro esquentam como febre.A equilibrista se olha no espelho pela última vez.Enfim,todos entram no palco maior de suas vidas.Tudo o que não é belo se transforma só por estar contagiado com a beleza dos sorrisos da assistência.
     O rufar dos tambores avisa que o mundo vai ter mágica de sobra.A noite sua.A equilibrista se equilibra entre bêbados e lona.O “Grande Público” pede o início do espetáculo e, finalmente,dá-se vida à noite.Ela se equilibra na corda bamba com sua roupa espevitada,fazendo sonhar ,de lá do alto, meninos e homens.Os sonhos são lugares lindos,e tudo o que se faz presente no circo só pode existir por culpa da roupa,da mágica,da beleza da equilibrista.
     Mas algo estranho acontece.Homens uniformizados invadem o espetáculo e atiram para o alto.O barulho da sirene avisa que o carnaval pode ser feito de balas e confetes.Seus uniformes não tinham mágica.Seus olhares não tinham cor.Um tiro atinge a equilibrista,que agora sangra olhando para a lona colorida do picadeiro.Sente o cheiro de fumaça.As crianças correm,as mulheres gritam.Por fim,um dos palhaços se abaixa para levantar a bela equilibrista,mas um dos homens uniformizados ameaça com uma arma o pobre palhaço.O palhaço chora,fazendo borrar a maquiagem branca e vermelha,que agora mancha seus sorriso pintado.O homem assiste e impede que o palhaço levante-a e, com a arma apontada para o anjo do riso, faz a pergunta: “O que você pensa que é!? Um homem ou o quê!?!?”, desafiando o palhaço a levantar a equilibrista sob o olhar de um 38.O palhaço olha fixamente os olhos cinzas daquele homem,que um dia teria filhos,teria uma mulher e, com coragem sub-humana,abaixa-se até a beleza que sangrava.E com esforço a levanta.Por fim,com ela nos braços,sente que em seu coração não havia mais rumo,não se equilibraria mais.Estava morta.E pôs-se a chorar sobre o corpo dela.O homem,que ainda o olhava com um olhar seco e sem vida,ainda espera resposta do palhaço.Repete a pergunta:” E agora!? O que você pensa que é!? “. O palhaço se abaixa deitando o corpo, e a resposta se faz como uma canção perdida numa noite de silêncio: “Sou apenas um palhaço!Sou da noite!Sou aquilo que penso ser!Sou filho da magia!Sou filho do carnaval!Sou filho da poesia!Sou tudo aquilo que você nunca vai ser! “ No meio da noite um tiro seco anuncia o final do espetáculo.A mágica se cala.

Niterói,13 de novembro de 2010.  Gabriel Nery Inchausp

terça-feira, 28 de setembro de 2010

A Carta

      Em algum lugar,um homem é feliz.Ele não lê jornais.Vive uma vida pacata cuidando de uma planta no jardim,de um passarinho que pousa em sua janela.Ele acorda todos os dias sorrindo.Se olha no espelho e sorri,por apenas saber que é feliz.
      Ele usa as mesmas roupas dos últimos três outonos para ficar em sua janela admirando as nuvens.Fica descalço pisando com os pés na terra molhada enquanto espera por mais um pé-de-abacate que cresce à sombra de outro pé-de-abacate.Olha para as fotos na parede com nostalgia.Suas mãos enrugadas tocam seus ralos e raros fios de cabelo.A brilhantina em cima do criado-mudo o faz lembrar de anos em que nada tinha fim.
      Ele sorri enquanto lembra dos momentos mais felizes de sua vida.Conseguia ser mais feliz? Analisa sua pequena coleção de discos.Puxa seu disco predileto: Louis Armstrong!!! É um pequeno compacto onde Louis canta "La Vie en Rose"...Ajeita a agulha do aparelho até que comece a música.Dança como um menino com seu par imaginário.Rodopia com sua dama fictícea,até cair em sua cama,sentindo ligeiro cansaço.Enfim,pensa:"A vida é linda!"
      É terça-feira.Alguém bate à porta.Ele abre sorrindo e cantarolando uma música que aprendera quando criança.O carteiro lhe surpreende.Não era dia de receber cartas.A fisionomia do carteiro pareceu-lhe preocupada,afoita.Quando recebe em suas mãos a carta,passa-lhe um pensamento ruim pela cabeça.Depois de muitos anos,sentia-se sozinho.Senta-se na cadeira da varanda e olha fixamente nos olhos do carteiro,que espera respostas às reações do velho homem.Ele sorri com esforço e lê em voz alta:
     "Papai,sentimos tua falta durante tua estadia no Centro de Tratamento Psicológico Intensivo.Te esperamos na próxima semana!Lembranças da tua filha Laura."

Niterói,28 de setembro de 2010, Gabriel Nery Inchausp.

sábado, 25 de setembro de 2010

O estrangeiro

     Me sentia um personagem de Kafka. Olhava para os lados e apenas via formas distorcidas e sem rosto que lembravam pessoas. Achei a visão pertubadora,mas a cidade já me parecia estranha a alguns dias. Saí pelas ruas procurando razões que me fizessem enxergar o que havia mudado enquanto eu dormia.
     Eu passava por uma esquina movimentada,quando perguntei,ao que parecia um homem,sobre o que havia acontecido com a cidade. Ele não compreendia o que eu o falava. Era recíproco. Corri até a padaria e perguntei à forma que seria o padeiro sobre o que havia ocorrido com todos a minha volta,mas nada,nem ninguém,poderia me entender.
     Não poderia deixar de notar naqueles rostos sem traços,que não havia sentimentos. Não havia nomes,apenas números. A angustia corria em minhas artérias e chegava até meus olhos. A sensação na qual eu me via refém era demasiadamente surreal e assustadora. Me tornara o único a não ser coisificado na cidade. Doía a ideia de me tornar um estrangeiro em uma nação sem face,mas eu seguia a tentar compreender o que acontecia a minha volta.
     Atravessei a avenida procurando por vida comum. Nada encontrara senão mais formas semi-humanas. Carros e ônibus cheios de vidas vazias andavam com destino para lugar algum. Tentei ligar para algum conhecido,mas quem me atendeu apenas se conteve no silêncio de quem não entende. A desilusão me contagiava o semblante. Decidi voltar para meu apartamento até que eu me conformasse com o ocorrido.
     Já em casa,me confortei em olhar meu rosto no espelho e ver que nele ainda havia formas. Ainda havia expressões que me faziam sentir vivo. Abri a janela. Me aproximei o quanto pude,fazendo coexistir minha curiosidade com meu medo de altura. Olhei para as ruas e vi pessoas saindo de suas casas. Não havia mais razões. Não havia mais destinos. Havia apenas a sensação de que eu estava acordado.

Niterói,25 de setembro de 2010,Gabriel Nery Inchausp.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Os pombos

     Abri as janelas da sala para poder fazer o vento entrar e reanimar aqueles rostos sentados.Estamos em setembro.Os dias se alternam entre o frio e o mais frio,mas o Sol ainda reinava absoluto entre os arranha-céus.Havia pombos do lado de fora.Parei alguns minutos a observá-los.Minhas mãos geladas tentavam se consolar enquanto o tédio imperativo e hiperativo nos ocupava a mente.Foi anteontem.
     Os pombos ainda me chamavam a atenção.Sempre me havia intrigado o fato dos pombos poderem voar tão alto...Admirava sua elegância suja,o seu poder de ser indiferente a tanta pressa e descrença.
     Se espalhavam por todos os lugares,desde as pracinhas vazias do subúrbio até o topo dos prédios comerciais.Quase onipresentes.Mas havia uma dúvida que não me saía da memória...Uma dúvida que me fazia refletir perante minhas gélidas mãos:"Por que eles ainda insistem em catar as migalhas no chão?"
     Passei mais alguns minutos a imaginar o porquê de tamanha mediocridade.Talvez houvesse necessidade...Talvez não...Se definia em uma existência paradoxal,na qual haviam de conviver diariamente com seus próprios contrastes.
     Vagarosamente,voltei meus pensamentos à sala...às janelas abertas.Minhas mãos já não estavam tão frias,e só então fui perceber novamente a apatia naqueles rostos.Havia pombos dentro da sala.

Niterói,13 de setembro de 2010,Gabriel Nery Inchausp.

Ensaio sobre a transitoriedade

     É.Mais do que qualquer outro momento,eu acredito na transitoriedade das coisas.Ainda me lembro das palavras de minha mãe.Ela falava sobre o futuro.
     Difícil compreender a efemeridade da vida quando se é apenas uma criança.O eco de suas palavras fizeram-se repercutir dentro de minha cabeça nestes dias solitários.Tudo passa.Coisas boas e ruins.Não que eu pensasse haver maior transitoriedade nos momentos alegres ou de tristeza.Apenas não imaginava ver um equilíbrio perfeito entre sorrisos e lágrimas.E minha mãe falava disso.O segredo da vida estaria na superação de cada vão existente entre as relações humanas.Como uma ponte que se eleva sobre abismos e nos dá a certeza sobre o destino que nos aguarda.Abismos,embora belos e perigosos,foram feitos para serem admirados à distância,pois também machucam e nos impedem de alcançar nossos destinos,a partir do momento em que somos seduzidos e caímos sobre suas belas pedras.
     Ela falava sobre as travessias.Falava sobre as longas pontes que eu precisaria atravessar sozinho para encontrar o meu destino.Que os olhos de meus filhos um dia me possam consolar...Minha mãe estava certa.

                                                                
                                                                  Niterói,08 de setembro de 2010,Gabriel Nery Inchausp